quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

...e só. É o que ofereço.

E você entenderia se eu dissesse que preciso de você pra ter minha inspiração? Que sem você eu respiro pesado, eu não saio do chão? E se eu calasse, você entenderia meu silêncio? E se eu gritasse que não tem outro jeito, certo ou errado, que eu já fiz minha escolha? Você ouviria? Se eu enlouquecesse, me perdesse de vez, você voltaria? Eu que tanto me perco – você me procuraria? Se eu dissesse que eu não preciso mais, que já nem lembro tanto, você perceberia minha mentira? Você me seguraria se eu estivesse indo longe demais, lembraria o meu nome e minha alma quando até eu já tivesse me esquecendo? Aliviaria minha dor, me daria o teu bem? E se eu desacreditasse de vez, perdesse toda a vontade, você me levaria pra sua casa e me daria o descanso? Me guiaria no escuro, me deixaria ser parte da sua paz? E se eu fosse só tormento pra acabar com essa paz, você continuaria aqui? E se os dias ficassem longos demais, você redescobriria comigo a poesia? Seria meu abrigo e aceitaria meu colo? Você entenderia tudo isso que eu deixei subentendido se eu te desse um sinal, pequeno, assim como esse? Brindaríamos nossa vida, beberíamos a nós – e só. É o que ofereço.

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Sobre o infinito e a saudade

E quando a rotina a pegava e os pensamentos da monotonia do dia-a-dia insistiam demais, ela saía. Quer dizer, ela ficava parada, no mesmo lugar – e ninguém que a visse diria que ela não estava mais lá. A verdade é que sua alma estava distante dali, em um lugar que só por pensamento se atinge. Um mundo em que ela, aqui tão presa ao chão, voava com a liberdade dos pássaros. E ali só se ousava pensar em algo novo, longe do cotidiano. Dessa vez ocorreu-lhe pensar no infinito – e a mulher tentou imagina-lo. Ah, impossível caber o infinito em sua imaginação de limitação humana. Mais difícil ainda seria não imaginar o infinito – pois o que viria depois do último espaço escuro? O nada? Então o nada se transformava automaticamente em algo interminável, e então o infinito. Isso já começava a irritá-la, não poder ir além do que cabe em nossa mente. Ela tinha era essa necessidade grande de poder compreender o infinito, jamais descansaria sem entender. Pensou então no que poderia preencher o infinito e então aproxima-la de algum entendimento – mas não, não havia obra feita pelo homem, nem mesmo as mais grandiosas, que pudesse espalhar-se pelo infinito inteiro. É que o infinito é abstrato demais, e tudo que é humano é de certa forma concreto – o infinito não tem forma nem dimensão, é assim como a matéria amorfa, mas que não cresce e nem diminui, pois não tem tamanho ou volume mensurável. A mulher resolve então procurar também em seu ser algo assim abstrato, que dispense muita explicação. Depois de muito mergulhar em si mesma e tatear algo ali que encaixasse em tal necessidade, a mulher descobre a saudade. E traz à tona a saudade que estava antes escondida, ignorada – e começa a sentir. Ah sim, agora entendia o infinito – pois só sua saudade era capaz de preenchê-lo. Sentia o infinito, tão grande, dentro de seu corpo, tão pequeno. E então foi como se dentro dela coubessem oceanos e chuvas incessantes, e nada disso fosse sequer preencher o que ela sentia. Pois a saudade, agora só que ela percebia, não preenchia seu infinito, negando o que ela pensara. A saudade era em si a medida do infinito, o infinito vazio – e esse só a presença DELE comida e engolida seria capaz de preencher.

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Fênix

Você deveria mesmo ler isso. E não tem a ver com explicações ou tentativas de explicações – é sobre verdade. Nós podemos fugir da verdade, manipular a verdade e continuar assim durante muito tempo, olhando apenas o lado que nos convém. E nesse tempo eu posso me convencer de que as coisas estão indo bem, de que é o caminho, a pessoa e o lugar certo finalmente, e eu poderia até gritar que tudo anda bem, que é o que eu quero. Mas é justamente esse tempo que não será suficiente, é esse tempo que vai ficar sempre esvaziando todo significado. Então é por isso que agora eu vou olhar para a verdade e encara-la face a face com toda a coragem que eu juntei. E não importa que eu ainda tenha medo. Eu estou cansado de não ter você por perto, de achar que alguma vez houve mesmo uma ligação. Não sei se perdemos isso no meio do caminho, ou se nunca tivemos. Mas o fato é que não há mais reciprocidade, não há mais troca. Não se pode prender a água entre os dedos por muito tempo, uma hora a vida seca. Eu estou extremamente cansado de ter que te ver, te ouvir, ou fingir que você se importa como eu gostaria para poder me sentir em paz e então enxergar sempre em você aquilo que eu quero, mas que você não é. Como eu cheguei tão longe? Quero dizer, como deixei isso ficar assim tão grande, tão complexo? E eu não posso precisar tanto assim, eu não posso me deixar perder tanto para me agarrar a mínima possibilidade de talvez encontrar você, ou de encontrar aquilo que eu queria tanto ver em você. O engraçado é que é só agora que a mágica acabou que eu consigo enxergar claramente, sem aquela névoa tampando todo o meu senso de certo e errado, e respirar de novo. Tanto tempo me gastando em perguntas que eu não precisava responder, tanto tempo esperando que você me levasse para casa que eu até esqueci o que isso era, estar em casa. Tanto tempo, e tanta coisa que se quebrou. Eu fiquei e estive dopado com a sua presença e com tudo em volta, como uma pessoa que vê pela primeira vez a cidade grande e se apaixona pelas luzes. Mas eu consumi cada pedaço disso, e esse sentimento não foi alimentado o suficiente, e agora acabou. Acabou, e que alívio em dizer isso. Mas também que aperto, e que dor. Dói porque eu apostei minhas fichas e perdi, eu errei. É, eu errei, mas é trabalhoso cavar um caminho de volta – quem sabe o problema seja esse, não há caminho ‘de volta’, é necessário simplesmente seguir em frente. Eu combinei a realidade com aquilo que eu construía na minha cabeça, e criei a minha pseudo-realidade que era meu abrigo mas também meu algoz. Só que agora esse mundo desabou, e eu só tenho o mundo real para me apegar, para viver – então eu vou aceita-lo, e aprender a gostar disso, de uma vez por todas poder dizer a verdade sem peso, sem esse peso enorme, não importa o quanto isso doa, ou o quanto eu tenha que abandonar das minhas meias-verdades que me sustentavam. Por mais que ainda sempre sobrem restos do que foi, a questão é que eu estou disposto a preencher de novo esse espaço branco e enorme que eu apaguei. É isso, é o fim dessa história de nós dois que só eu conheço. Eu criei a pessoa que eu inconsequentemente vi em você, e precisei dela assim como em uma fome. E senti falta dessa pessoa como o deserto sente falta da água – e por Deus, como eu queria ter você por perto. E quando eu percebi que essa pessoa nunca foi real, eu perdi todo o chão, fiquei sem ar e perdido no labirinto que eu construí. Foi como aquela semente tão cuidada mas que simplesmente não brotou, e agora é cinza, morta. E foi tudo tão, tão cinza. Mas então eu sobrevivi. Eu não quero encontrar em outra pessoa o que você significou, mas quero enxergar em mim, e me ser suficiente. Ser minha própria chuva, e ter a grandeza de um oceano. Talvez eu precise mesmo é de uma noite bem dormida, de uma rocha forte pra construir minha cabana e me abrigar da chuva. E lá eu estaria protegido, e mandaria no que eu sinto – mas ninguém tem tanta sorte assim... quer dizer, no fundo não temos mesmo o poder de escolher o que vamos sentir. Mas temos a escolha de não aceitar, de lutar, e de deixar nascer algo novo das cinzas do que sobraram, assim como uma fênix. Deixar o tempo passar, e tentar aprender alguma coisa nessa passagem. Eu falo tanto em movimento, então melhor deixar que venha a mudança – você já foi pra mim a mudança, mas agora você é o que eu estou deixando o tempo levar. Acho que está em tempo de parar de lutar essa batalha que eu sei já estar perdida, hastear a bandeira branca e recuar, descansar um pouco. Estou fazendo uma escolha bem agora, a de acreditar em reinvenção, em reconstrução, e não procurar mais sempre algo para perder, simplesmente ir. Deixar que o passado durma. Eu só queria dizer que agora, você poderia ir embora.

domingo, 16 de novembro de 2008

Bóulesis

Em 1990 estreou a peça 'Six Degrees of Separation', de John Guare. A história baseia-se na teoria de que, se tivéssemos todas as pessoas que conhecemos a um passo de nós, e essas por sua vez tivessem todas as pessoas que conhecem a um passo delas, todas as pessoas do mundo estariam ligadas a uma distância média de seis passos. Seis bilhões de pessoas, e apenas seis pessoas nos separando de cada uma delas. Podemos acreditar ou não que de fato as coisas sejam assim. Mas, quando acreditamos, de algum jeito começamos a nos sentir mais parte de tudo isso e então o mundo não parece mais tão grande assim. Nos sentimos próximos, e essa sensação é reconfortante – pensar que no final das contas não estamos tão sozinhos.
Ainda na peça, a personagem Ouisa Kitrreged diz, a respeito da teoria: “Eu li em algum lugar que todo mundo neste planeta é separado por só seis outras pessoas. Seis graus de separação entre nós e todas as pessoas no planeta. O Presidente dos Estados Unidos, um gondolier em Veneza, apenas descubra as seis pessoas. Eu achei extremamente bom que estejamos tão pertos. Mas isso também me parece um pouco com tortura chinesa – estarmos tão pertos porque temos que achar as seis pessoas certas para fazer a conexão certa... Eu estou ligado, você está ligado a todo mundo por um caminho de seis pessoas”. Quantas conexões certas nós já não deixamos passar? Como saber quais são essas seis pessoas que nos ligarão à pessoa certa? O único jeito é arriscar, conhecer pessoas – e talvez, apenas talvez, acreditar que há alguma coisa por trás de tantas coincidências e azares alheios, aparentemente desconexos. A psicologia moderna diz que, no mundo, várias pessoas têm a capacidade de nos fazer felizes, completos – VÁRIAS pessoas. Mas ainda há aqueles que insistem em acreditar na pessoa certa – quem sabe para esses haja mesmo essa pessoa pela qual vale a pena esperar.
‘Destino’ é outra coisa na qual podemos acreditar ou não. Os gregos acreditavam na existência de um Livro do Destino, que existia desde sempre e que determinava o sim ou não de tudo. Os deuses poderiam consultá-lo, e cabia às Três Parcas executar o que nele estava escrito. Para os gregos ‘moira’, para os romanos ‘fatum’, o destino sempre era visto como pré-determinação implacável. Mas estes mesmos gregos também acreditavam no bóulesis, “desejo” – e quem sabe este seja capaz de fazer com que tomemos nosso destino em nossas próprias mãos.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008





Às vezes sinto como se estivéssemos todos seguindo a nossa estrada de tijolos amarelos para, no final, descobrirmos que o fabuloso mágico não passava de um velhinho impostor e que as respostas que procurávamos estavam o tempo todo dormindo dentro de nós mesmos. E quem sabe de fato elas estejam – quem sabe precisemos apenas de um coração de pano para voltarmos a ter sentimentos, assim como o homem-de-lata, ou bebermos uma mistura esquisita para acreditarmos termos coragem, como o Leão Covarde.

Mas, se é desse jeito – se as respostas estão todas dentro de nós mesmos – para que procurar e se arriscar tanto? Para que passar por tudo isso? E se estamos como Dorothy, perdidos em uma terra distante, longe de casa? Mas foi essa mesma Dorothy que, quando a Fada Boa do Sul disse “Você não precisava ter passado por nada disso. O que você precisava para voltar para casa estava o tempo todo com você: os seus sapatinhos prateados – eles são mágicos”, respondeu “Mas se eu não tivesse passado por isso eu nunca teria conhecido o espantalho, o homem-de-lata e o leão”. Sempre vale a pena.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

O que é perfeito já é morto

Nossa condição humana implica em todas essas coisas turvas e incorretas que fazemos. Tentar encaixar-se no rígido conceito da perfeição moralista seria desperdiçar uma vida. Condenar o errado seria condenar nosso espírito. Mas o errado sempre me atraiu mesmo – não gosto do imaculado, do sadio, mas sim das coisas incertas, até pecaminosas. Gosto do imperfeito e do não-acabado, gosto daquilo que permite a capacidade de evolução, de ser melhor. Na perfeição não há busca por melhorias, ela é estática – e eu sempre repugnei essa estagnação, gosto é do dinâmico, preciso de movimento. Gosto da incerteza, daquele que ainda incessantemente se molda e se constrói, que por vezes erra e por vezes acerta. Essa imprevisão do imperfeito (irá dar certo ou não?) me seduz. Não quero o que já é escrito e feito – quero é aquilo que ainda se escreve, que ainda se permite. E essa reconstrução, esse cair e se levantar, é o combustível para a vida, é o que a impulsiona. O que é perfeito já é morto. O impecável mataria todo o nosso lado humano, nos igualaria às máquinas, mortas. O errado é infinitamente bom, porque é humano.

terça-feira, 4 de novembro de 2008




Não há mudança sem ousadia. E não se trata daquela ousadia brilhante, vistosa - mas daquela tímida ousadia, até insegura, de se atirar ao novo, de se entregar ao desconhecido. A mesma ousadia infantil que tínhamos, quando crianças, quando nos cansávamos de engatinhar e arricávamos os primeiros passos hesitantes. Mas ousávamos - e ousávamos também quando ainda pequenos fechávamos os olhos e pulávamos de um lugar alto, confiantes pois sabíamos ter os braços de nosso pai prontos para nos pegar. É assim que vínhamos treinando para a vida, e agora começamos o jogo. Nos deram tantos conselhos e avisos, mas nunca nos avisaram que seria tão complicado andar pelas próprias pernas, talvez até porque sabiam que, se soubéssemos, havia possibilidade de que desistíssemos, e isso sim seria uma tragédia. É tão perigosa essa liberdade que eu sempre quis. Poderíamos ficar o tempo todo na segurança de nossas casas, mas ainda assim preferimos brincar muito perto do abismo porque é mais excitante - e é só quando caímos no escuro gigante desse abismo que descobrimos sermos seres alados.

Nós sentimos demais – e quem sabe seja essa mesma a sina dos tempos modernos, a Era da Depressão. Mas às vezes surge uma dúvida: Será que toda essa complexidade emocional não é uma casca, uma rédea que tentamos insistentemente colocar na criatura selvagem que habita em nós? Talvez tenhamos simplesmente que aceitar esse espírito primitivo – muito mais antigo que nossa organização -, esse instinto latente, e não tentar racionalizá-lo ou entendê-lo. E, a partir dessa aceitação, veríamos com olhos mais tolerantes e menos preconceituosos o nosso lado horrível e também o nosso lado ótimo – e aprenderíamos a nos amar como ser inteiro, humano.

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Você vive e você aprende, e no final das contas você sobrevive. É a verdade que eu preciso saber e por enquanto só isso já me é suficiente. Se olharmos bem, não precisamos de muito mais que isso para viver - não que a vida seja simples, mas tudo que é complexo, a partir do momento em que é aceito sem tentativas de explicação, se torna simples. Não crio nenhum personagem aqui - escrevo de dentro, compartilho a minha verdade, e é o único jeito de chegar um pouco mais perto de quem me lê, e quem sabe de mim mesmo. Eu achei que ia ser fácil, mas não foi e eu estou cansado. Mas o que me exauri mesmo é esse mania de tentar entender tudo - e eu estou abrindo mão disso agora: "Você vive e você aprende", e nada mais! A vida simplesmente me é, e assim eu continuo.
Pra você que me conhece, não precisa mais se cansar comigo e com a minha insegurança. E não precisa mais tentar pensar em algum exemplo que se encaixe na sua lição de moral - é, eu estou dispensando conselhos, pelo menos por enquanto. Sem mais exageros dos meus problemas pequenos. E eu também cansei de tentar convencer todo mundo em volta de eu nem lembro mais o que - e toda essa atenção, eu também não preciso mais dela. Eu vou tentar estar em paz - provavelmente eu não conseguirei, mas não aceitarei mais a tristeza como estado de espírito duradouro. E nem a revolta. E eu não vou reler esse texto nenhuma vez, não vou tentar melhorá-lo ou deixá-lo bom. Essa busca pela perfeição, pelo melhor, ela acaba com a verdade das coisas - e o que eu escrevi aqui é a minha verdade, meia-boca e confusa, mas MINHA. Do mais eu espero sinceramente que eu consiga ter maturidade suficiente para lidar com o que me acontecer , plenitude para aceitar as perdas, coragem para encarar as mudanças, hombridade para arcar com as consequências de meus atos e que eu jamais caia nesse tal de "ter bom-senso nas decisões". Rotina nenhuma me pega mais.

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Sexta-Feira de uma jovem viúva do subúrbio



Desceu apressada as escadas para logo tomar seu rumo, determinada, por entre a multidão que desbravava a ruela. E, no fluxo dessa manada, as pessoas esbarravam-se, entreolhavam-se e, muito raramente, deixavam escapar um sorriso (ou faziam força para que um as viesse à boca) apenas para em seguida retomar a cara fechada que o dia-a-dia lhes dera.

As ondas de pessoas que iam e vinham – assim como formigas apressadas – conferiam à atmosfera uma vibração enérgica, viva, caótica – sensação que incomodaria os não acostumados, mas não aquela mulher. Ela misturava-se com graça ao corpo da multidão em movimento, como sangue correndo por entre as veias da cidade.

Ali a mulher era anônima, sem começo nem fim definido – apenas fazia parte. Então ela, antes tão harmoniosamente ajustada ao grupo que ia, se desgarrou do rebanho, como que decidido de última hora, e entrou de súbito em um dos edifícios.

Demorou-se lá dentro por uma meia hora, para só então juntar-se novamente às pessoas da ruela. Uma de suas mãos continuava segurando firme a bolsa junto ao corpo; a outra, contudo, procurava às cegas algo no bolso traseiro de sua calça – que, após alguns segundos de esforço da mulher, viemos a saber tratar-se de um papelzinho mal-recortado, o qual ela leu com hesitante atenção para depois rasgá-lo e deixar que seus pedaços sucumbissem àquele mar de gente.

Agora a mulher parecia ter um novo rumo, uma direção. E quem a visse ali julgaria não passar nada mais por sua cabeça além do destino à que o papelzinho lhe enviara – tendencioso engano; atormentavam a cabeça da mulher, naquele mesmo momento, incontáveis aflições e agonias que jamais viremos a conhecer.

Também nunca saberemos o que lhe passou nos quarenta minutos que se seguiram pois ela adentrou sorrateira em um dos tantos ônibus que circulavam pela região àquela hora e dele só foi descer a umas vinte quadras distantes da ruela de que partira.
Ao longo do trajeto percorrido pelo ônibus via-se o dinamismo e o movimento da ruela, como tantas outras ruelas, vivas em suas vitrines, tecer-se em um ar mais frio, de casas mais cinzas e pessoas menos freqüentes.

Ali a vida já não era mais pulsante, enérgica. O silêncio era insistentemente perturbado por barulhos distantes, quebrados. A mulher sentia o ar pesando-lhe nos ombros. Olhou ao seu redor, primeiro desconfiada, depois apreensiva, para finalmente constatar que estava no lugar certo.

Continuou o seu caminho, ao que agora caminhava e, muito embora não deixasse transparecer, sentia medo. E o medo torcia-lhe o estômago e subia-lhe pelas entranhas quando então a mulher, com a admirável frieza que a vida ensinara, o engolia em seco.

Dobrou algumas esquinas, outras não, sem jamais errar o caminho – ela o sabia de cor. Na verdade o refazia quase toda noite, em pensamento, quando tentava em vão dormir ou afastar de sua consciência o peso dessa rotina soturna que a vida havia lhe imposto como forma de sobrevivência.

A foi ali, na entrada de um desses edifícios que mais parecem prisões com suas janelas e grades, com cada varal que cortava a rua ao alto pesando de roupas – foi ali que a mulher recebeu permissão para entrar, e acatou ao gesto.

Uma vez dentro do edifício, procurou na bolsa o celular – não o seu, mas aquele que lhe haviam dado – e, como o combinado, discou o número dado e desligou ao primeiro toque, sem ser atendida. Havia naquela situação uma organização que a acalmava e a fazia prosseguir assim como quem lê um manual – tudo sairia como o planejado.

Subiu três lances de escada e deparou-se com aquele corredor que mais parecia engolir as pessoas que por ele se aventuravam. Era mal-iluminado e também cheirava mal – contudo o cheiro que realmente enojava a mulher era aquele da podridão do ato que cometia.

Decidiu por afastar esses pensamentos e seguir com o roteiro. Não havia ninguém ali para testemunhar sua dúvida e sua dor, e com isso ninguém ali para acusá-la. Sentia mesmo que qualquer olhar que se voltasse para ela racharia sua suposta coragem e a deixaria nua, a faria desistir, sair correndo talvez. Mas ninguém nunca tomara conhecimento dessa rotina da mulher, e jamais alguém tomaria.

Ela seguiu então corredor adentro e abriu a porta como lhe orientaram. No cômodo havia um só móvel, a mesa sobre a qual a mulher deixou o embrulho que tirou da bolsa, volumoso, meio amassado. Acabava ali o seu papel – agora ela voltava, novamente apressada, para sua casa. Seus filhos, a esta hora, já deviam estar voltando da escola.

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

De súbito, a Verdade






Encontrava-se em uma rua deserta – assim a chamava por só estar ao alcance de seus olhos aquilo que não era vivo, aquilo que estava ali, estagnado, como que à parte da vida que fluía em todo lugar mas não naquele. Ali a vida era estática. No asfalto esburacado haviam se formado algumas poças, vestígios da chuva que só a pouco cessara, e que agora refletiam a luz hesitante dos poucos postes do lugar. As casas ao longo da rua como que enalteciam apenas o silêncio que ali pairava, e guardavam aquele pedaço da tensão do resto do mundo – não tinham nada de humano, nada de caloroso. Eram casas frias com ares frios, e mais nada. Concreto.

E não é que justo ali ocorreu-lhe pensar – nunca antes havia pensado, por assim dizer. Vivia sua vida, pois também se vive sem ser feliz, e com isso ele se conformara. E dera a essa sua existência rotineira a graça de chamá-la vida, e assim a chamava pois era obra sua, obra de seu esforço para conseguir a estabilidade que sempre julgou precisar. Tinha esposa, filhos e amante; tinha carro, emprego e casa paga – mas não havia ocorrido a ele, em meio a toda essa rotina que denominara vida, pensar. E agora, distante de qualquer mundo que possa ter construído, ele não estava na vida que incessantemente lapidava na esperança de não ter que imaginar como seria se não a tivesse – e se ele desmoronasse? Mas agora, naquela rua deserta, ele estava ali e só. E essa vida que insistia, assim como a chuva, cessara de súbito.

Viu então que nada ali cabia em sua realidade construída, sempre tão preenchida por pessoas e por aceitação. A vida ali pulsava – o silêncio pulsava, o vazio pulsava, o escuro pulsava. Por perto não havia nada vivo que o homem fosse capaz de reconhecer e essa ausência paradoxalmente preenchia a atmosfera com um caudaloso viver. Pela primeira vez ele sentiu a vida, e sentiu-a ali, sozinho. E sentiu-a à noite – não por coincidência, pois é na noite que a vida vibra, lateja. E ali, parado e assustado diante da descoberta que se fazia sentir em todo seu corpo, o homem igualou-se a noite e a tudo que o rodeava – e sentiu-se pleno. Sentiu-se parte do mundo, do inteiro, e não daquele mínimo que tentava dia-a-dia afirmar como confortável. Era isso que lhe acontecera, o homem abrira mão de seu conforto, de seu conveniente – e estava livre. Sentia-se livre, dolorosamente livre. E a liberdade ardia-lhe nas veias.
Seu grito então corta o silêncio que, contudo, logo o abafa. Um grito doído, agudo – mas fora, sobre tudo, um grito libertador. Naquele grito o homem expulsava algo que sabia não necessitar mais, muito embora não soubesse o que.
Mesmo confuso com as verdades que se desvendavam bem ali na sua frente e iluminavam sua ignorância, o homem estava maravilhado. Maravilhado porque se sentia vivo. E sua força era do tamanho de sua solidão. Enxergara finalmente a vida que até então havia se escondido, latente, e agora se escancarava como o temporal que arromba uma janela. E isso lhe trazia uma compreensão maior, que tornava-o capaz de não procurar entender; sentir apenas, passivo – e inquietava o seu espírito.
Fechou os olhos. Seu corpo, como que tomado por emoção insuportável, tremia. Era a verdade que lhe arrebentara as portas e o invadia pouco a pouco. As pernas cederam e o homem caiu. As mãos encontraram cegas o asfalto, numa tentativa inútil de proteção, e ele agora as sentia esfoladas, sangrando e ardendo – mas, mais que isso, sentia o doce prazer de se estar vulnerável, de sofrer. E tomou sua dor como prova de que se estava vivo, enormemente vivo.

Ainda ajoelhado, voltou-se para o céu e nele procurou algo à que pudesse agradecer o que lhe acontecera – não encontrando nada, levantou-se e continuou seu caminho. Já não era mais o mesmo.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Tornar-se gente


"Sem entender jamais o que havia de bom em ser gente, em sentir-se cansada, em diariamente falir; só os iniciados compreendem essa nuance de vício e esse refinamento de vida."

(Imitação da Rosa - Clarice Lispestor)


Ela pensou em como seria se fosse gente, se pudesse sentir amor, ódio, até mesmo fome. Pensou em como seria esse prazer de que tanto falavam. Pensou em como seria estar angustiada, pensou em como seria mentir (ela, que nunca havia sequer dito algo). Pensou no que faria se lhe ocorresse essa tal embriaguez, se lhe ocorresse o vício. Pensou em como seria gostar, cativar, pensou como seria sentir falta. Pensou em como seria diariamente sofrer e pensou em como seria suportar. Pensou em como seria morrer... Ela até que gostaria de ser gente. Pensou melhor, preferia continuar sendo pedra mesmo, sem nunca se questionar.

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