sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Sexta-Feira de uma jovem viúva do subúrbio



Desceu apressada as escadas para logo tomar seu rumo, determinada, por entre a multidão que desbravava a ruela. E, no fluxo dessa manada, as pessoas esbarravam-se, entreolhavam-se e, muito raramente, deixavam escapar um sorriso (ou faziam força para que um as viesse à boca) apenas para em seguida retomar a cara fechada que o dia-a-dia lhes dera.

As ondas de pessoas que iam e vinham – assim como formigas apressadas – conferiam à atmosfera uma vibração enérgica, viva, caótica – sensação que incomodaria os não acostumados, mas não aquela mulher. Ela misturava-se com graça ao corpo da multidão em movimento, como sangue correndo por entre as veias da cidade.

Ali a mulher era anônima, sem começo nem fim definido – apenas fazia parte. Então ela, antes tão harmoniosamente ajustada ao grupo que ia, se desgarrou do rebanho, como que decidido de última hora, e entrou de súbito em um dos edifícios.

Demorou-se lá dentro por uma meia hora, para só então juntar-se novamente às pessoas da ruela. Uma de suas mãos continuava segurando firme a bolsa junto ao corpo; a outra, contudo, procurava às cegas algo no bolso traseiro de sua calça – que, após alguns segundos de esforço da mulher, viemos a saber tratar-se de um papelzinho mal-recortado, o qual ela leu com hesitante atenção para depois rasgá-lo e deixar que seus pedaços sucumbissem àquele mar de gente.

Agora a mulher parecia ter um novo rumo, uma direção. E quem a visse ali julgaria não passar nada mais por sua cabeça além do destino à que o papelzinho lhe enviara – tendencioso engano; atormentavam a cabeça da mulher, naquele mesmo momento, incontáveis aflições e agonias que jamais viremos a conhecer.

Também nunca saberemos o que lhe passou nos quarenta minutos que se seguiram pois ela adentrou sorrateira em um dos tantos ônibus que circulavam pela região àquela hora e dele só foi descer a umas vinte quadras distantes da ruela de que partira.
Ao longo do trajeto percorrido pelo ônibus via-se o dinamismo e o movimento da ruela, como tantas outras ruelas, vivas em suas vitrines, tecer-se em um ar mais frio, de casas mais cinzas e pessoas menos freqüentes.

Ali a vida já não era mais pulsante, enérgica. O silêncio era insistentemente perturbado por barulhos distantes, quebrados. A mulher sentia o ar pesando-lhe nos ombros. Olhou ao seu redor, primeiro desconfiada, depois apreensiva, para finalmente constatar que estava no lugar certo.

Continuou o seu caminho, ao que agora caminhava e, muito embora não deixasse transparecer, sentia medo. E o medo torcia-lhe o estômago e subia-lhe pelas entranhas quando então a mulher, com a admirável frieza que a vida ensinara, o engolia em seco.

Dobrou algumas esquinas, outras não, sem jamais errar o caminho – ela o sabia de cor. Na verdade o refazia quase toda noite, em pensamento, quando tentava em vão dormir ou afastar de sua consciência o peso dessa rotina soturna que a vida havia lhe imposto como forma de sobrevivência.

A foi ali, na entrada de um desses edifícios que mais parecem prisões com suas janelas e grades, com cada varal que cortava a rua ao alto pesando de roupas – foi ali que a mulher recebeu permissão para entrar, e acatou ao gesto.

Uma vez dentro do edifício, procurou na bolsa o celular – não o seu, mas aquele que lhe haviam dado – e, como o combinado, discou o número dado e desligou ao primeiro toque, sem ser atendida. Havia naquela situação uma organização que a acalmava e a fazia prosseguir assim como quem lê um manual – tudo sairia como o planejado.

Subiu três lances de escada e deparou-se com aquele corredor que mais parecia engolir as pessoas que por ele se aventuravam. Era mal-iluminado e também cheirava mal – contudo o cheiro que realmente enojava a mulher era aquele da podridão do ato que cometia.

Decidiu por afastar esses pensamentos e seguir com o roteiro. Não havia ninguém ali para testemunhar sua dúvida e sua dor, e com isso ninguém ali para acusá-la. Sentia mesmo que qualquer olhar que se voltasse para ela racharia sua suposta coragem e a deixaria nua, a faria desistir, sair correndo talvez. Mas ninguém nunca tomara conhecimento dessa rotina da mulher, e jamais alguém tomaria.

Ela seguiu então corredor adentro e abriu a porta como lhe orientaram. No cômodo havia um só móvel, a mesa sobre a qual a mulher deixou o embrulho que tirou da bolsa, volumoso, meio amassado. Acabava ali o seu papel – agora ela voltava, novamente apressada, para sua casa. Seus filhos, a esta hora, já deviam estar voltando da escola.

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