quinta-feira, 23 de outubro de 2008

De súbito, a Verdade






Encontrava-se em uma rua deserta – assim a chamava por só estar ao alcance de seus olhos aquilo que não era vivo, aquilo que estava ali, estagnado, como que à parte da vida que fluía em todo lugar mas não naquele. Ali a vida era estática. No asfalto esburacado haviam se formado algumas poças, vestígios da chuva que só a pouco cessara, e que agora refletiam a luz hesitante dos poucos postes do lugar. As casas ao longo da rua como que enalteciam apenas o silêncio que ali pairava, e guardavam aquele pedaço da tensão do resto do mundo – não tinham nada de humano, nada de caloroso. Eram casas frias com ares frios, e mais nada. Concreto.

E não é que justo ali ocorreu-lhe pensar – nunca antes havia pensado, por assim dizer. Vivia sua vida, pois também se vive sem ser feliz, e com isso ele se conformara. E dera a essa sua existência rotineira a graça de chamá-la vida, e assim a chamava pois era obra sua, obra de seu esforço para conseguir a estabilidade que sempre julgou precisar. Tinha esposa, filhos e amante; tinha carro, emprego e casa paga – mas não havia ocorrido a ele, em meio a toda essa rotina que denominara vida, pensar. E agora, distante de qualquer mundo que possa ter construído, ele não estava na vida que incessantemente lapidava na esperança de não ter que imaginar como seria se não a tivesse – e se ele desmoronasse? Mas agora, naquela rua deserta, ele estava ali e só. E essa vida que insistia, assim como a chuva, cessara de súbito.

Viu então que nada ali cabia em sua realidade construída, sempre tão preenchida por pessoas e por aceitação. A vida ali pulsava – o silêncio pulsava, o vazio pulsava, o escuro pulsava. Por perto não havia nada vivo que o homem fosse capaz de reconhecer e essa ausência paradoxalmente preenchia a atmosfera com um caudaloso viver. Pela primeira vez ele sentiu a vida, e sentiu-a ali, sozinho. E sentiu-a à noite – não por coincidência, pois é na noite que a vida vibra, lateja. E ali, parado e assustado diante da descoberta que se fazia sentir em todo seu corpo, o homem igualou-se a noite e a tudo que o rodeava – e sentiu-se pleno. Sentiu-se parte do mundo, do inteiro, e não daquele mínimo que tentava dia-a-dia afirmar como confortável. Era isso que lhe acontecera, o homem abrira mão de seu conforto, de seu conveniente – e estava livre. Sentia-se livre, dolorosamente livre. E a liberdade ardia-lhe nas veias.
Seu grito então corta o silêncio que, contudo, logo o abafa. Um grito doído, agudo – mas fora, sobre tudo, um grito libertador. Naquele grito o homem expulsava algo que sabia não necessitar mais, muito embora não soubesse o que.
Mesmo confuso com as verdades que se desvendavam bem ali na sua frente e iluminavam sua ignorância, o homem estava maravilhado. Maravilhado porque se sentia vivo. E sua força era do tamanho de sua solidão. Enxergara finalmente a vida que até então havia se escondido, latente, e agora se escancarava como o temporal que arromba uma janela. E isso lhe trazia uma compreensão maior, que tornava-o capaz de não procurar entender; sentir apenas, passivo – e inquietava o seu espírito.
Fechou os olhos. Seu corpo, como que tomado por emoção insuportável, tremia. Era a verdade que lhe arrebentara as portas e o invadia pouco a pouco. As pernas cederam e o homem caiu. As mãos encontraram cegas o asfalto, numa tentativa inútil de proteção, e ele agora as sentia esfoladas, sangrando e ardendo – mas, mais que isso, sentia o doce prazer de se estar vulnerável, de sofrer. E tomou sua dor como prova de que se estava vivo, enormemente vivo.

Ainda ajoelhado, voltou-se para o céu e nele procurou algo à que pudesse agradecer o que lhe acontecera – não encontrando nada, levantou-se e continuou seu caminho. Já não era mais o mesmo.

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