terça-feira, 28 de outubro de 2008

Você vive e você aprende, e no final das contas você sobrevive. É a verdade que eu preciso saber e por enquanto só isso já me é suficiente. Se olharmos bem, não precisamos de muito mais que isso para viver - não que a vida seja simples, mas tudo que é complexo, a partir do momento em que é aceito sem tentativas de explicação, se torna simples. Não crio nenhum personagem aqui - escrevo de dentro, compartilho a minha verdade, e é o único jeito de chegar um pouco mais perto de quem me lê, e quem sabe de mim mesmo. Eu achei que ia ser fácil, mas não foi e eu estou cansado. Mas o que me exauri mesmo é esse mania de tentar entender tudo - e eu estou abrindo mão disso agora: "Você vive e você aprende", e nada mais! A vida simplesmente me é, e assim eu continuo.
Pra você que me conhece, não precisa mais se cansar comigo e com a minha insegurança. E não precisa mais tentar pensar em algum exemplo que se encaixe na sua lição de moral - é, eu estou dispensando conselhos, pelo menos por enquanto. Sem mais exageros dos meus problemas pequenos. E eu também cansei de tentar convencer todo mundo em volta de eu nem lembro mais o que - e toda essa atenção, eu também não preciso mais dela. Eu vou tentar estar em paz - provavelmente eu não conseguirei, mas não aceitarei mais a tristeza como estado de espírito duradouro. E nem a revolta. E eu não vou reler esse texto nenhuma vez, não vou tentar melhorá-lo ou deixá-lo bom. Essa busca pela perfeição, pelo melhor, ela acaba com a verdade das coisas - e o que eu escrevi aqui é a minha verdade, meia-boca e confusa, mas MINHA. Do mais eu espero sinceramente que eu consiga ter maturidade suficiente para lidar com o que me acontecer , plenitude para aceitar as perdas, coragem para encarar as mudanças, hombridade para arcar com as consequências de meus atos e que eu jamais caia nesse tal de "ter bom-senso nas decisões". Rotina nenhuma me pega mais.

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Sexta-Feira de uma jovem viúva do subúrbio



Desceu apressada as escadas para logo tomar seu rumo, determinada, por entre a multidão que desbravava a ruela. E, no fluxo dessa manada, as pessoas esbarravam-se, entreolhavam-se e, muito raramente, deixavam escapar um sorriso (ou faziam força para que um as viesse à boca) apenas para em seguida retomar a cara fechada que o dia-a-dia lhes dera.

As ondas de pessoas que iam e vinham – assim como formigas apressadas – conferiam à atmosfera uma vibração enérgica, viva, caótica – sensação que incomodaria os não acostumados, mas não aquela mulher. Ela misturava-se com graça ao corpo da multidão em movimento, como sangue correndo por entre as veias da cidade.

Ali a mulher era anônima, sem começo nem fim definido – apenas fazia parte. Então ela, antes tão harmoniosamente ajustada ao grupo que ia, se desgarrou do rebanho, como que decidido de última hora, e entrou de súbito em um dos edifícios.

Demorou-se lá dentro por uma meia hora, para só então juntar-se novamente às pessoas da ruela. Uma de suas mãos continuava segurando firme a bolsa junto ao corpo; a outra, contudo, procurava às cegas algo no bolso traseiro de sua calça – que, após alguns segundos de esforço da mulher, viemos a saber tratar-se de um papelzinho mal-recortado, o qual ela leu com hesitante atenção para depois rasgá-lo e deixar que seus pedaços sucumbissem àquele mar de gente.

Agora a mulher parecia ter um novo rumo, uma direção. E quem a visse ali julgaria não passar nada mais por sua cabeça além do destino à que o papelzinho lhe enviara – tendencioso engano; atormentavam a cabeça da mulher, naquele mesmo momento, incontáveis aflições e agonias que jamais viremos a conhecer.

Também nunca saberemos o que lhe passou nos quarenta minutos que se seguiram pois ela adentrou sorrateira em um dos tantos ônibus que circulavam pela região àquela hora e dele só foi descer a umas vinte quadras distantes da ruela de que partira.
Ao longo do trajeto percorrido pelo ônibus via-se o dinamismo e o movimento da ruela, como tantas outras ruelas, vivas em suas vitrines, tecer-se em um ar mais frio, de casas mais cinzas e pessoas menos freqüentes.

Ali a vida já não era mais pulsante, enérgica. O silêncio era insistentemente perturbado por barulhos distantes, quebrados. A mulher sentia o ar pesando-lhe nos ombros. Olhou ao seu redor, primeiro desconfiada, depois apreensiva, para finalmente constatar que estava no lugar certo.

Continuou o seu caminho, ao que agora caminhava e, muito embora não deixasse transparecer, sentia medo. E o medo torcia-lhe o estômago e subia-lhe pelas entranhas quando então a mulher, com a admirável frieza que a vida ensinara, o engolia em seco.

Dobrou algumas esquinas, outras não, sem jamais errar o caminho – ela o sabia de cor. Na verdade o refazia quase toda noite, em pensamento, quando tentava em vão dormir ou afastar de sua consciência o peso dessa rotina soturna que a vida havia lhe imposto como forma de sobrevivência.

A foi ali, na entrada de um desses edifícios que mais parecem prisões com suas janelas e grades, com cada varal que cortava a rua ao alto pesando de roupas – foi ali que a mulher recebeu permissão para entrar, e acatou ao gesto.

Uma vez dentro do edifício, procurou na bolsa o celular – não o seu, mas aquele que lhe haviam dado – e, como o combinado, discou o número dado e desligou ao primeiro toque, sem ser atendida. Havia naquela situação uma organização que a acalmava e a fazia prosseguir assim como quem lê um manual – tudo sairia como o planejado.

Subiu três lances de escada e deparou-se com aquele corredor que mais parecia engolir as pessoas que por ele se aventuravam. Era mal-iluminado e também cheirava mal – contudo o cheiro que realmente enojava a mulher era aquele da podridão do ato que cometia.

Decidiu por afastar esses pensamentos e seguir com o roteiro. Não havia ninguém ali para testemunhar sua dúvida e sua dor, e com isso ninguém ali para acusá-la. Sentia mesmo que qualquer olhar que se voltasse para ela racharia sua suposta coragem e a deixaria nua, a faria desistir, sair correndo talvez. Mas ninguém nunca tomara conhecimento dessa rotina da mulher, e jamais alguém tomaria.

Ela seguiu então corredor adentro e abriu a porta como lhe orientaram. No cômodo havia um só móvel, a mesa sobre a qual a mulher deixou o embrulho que tirou da bolsa, volumoso, meio amassado. Acabava ali o seu papel – agora ela voltava, novamente apressada, para sua casa. Seus filhos, a esta hora, já deviam estar voltando da escola.

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

De súbito, a Verdade






Encontrava-se em uma rua deserta – assim a chamava por só estar ao alcance de seus olhos aquilo que não era vivo, aquilo que estava ali, estagnado, como que à parte da vida que fluía em todo lugar mas não naquele. Ali a vida era estática. No asfalto esburacado haviam se formado algumas poças, vestígios da chuva que só a pouco cessara, e que agora refletiam a luz hesitante dos poucos postes do lugar. As casas ao longo da rua como que enalteciam apenas o silêncio que ali pairava, e guardavam aquele pedaço da tensão do resto do mundo – não tinham nada de humano, nada de caloroso. Eram casas frias com ares frios, e mais nada. Concreto.

E não é que justo ali ocorreu-lhe pensar – nunca antes havia pensado, por assim dizer. Vivia sua vida, pois também se vive sem ser feliz, e com isso ele se conformara. E dera a essa sua existência rotineira a graça de chamá-la vida, e assim a chamava pois era obra sua, obra de seu esforço para conseguir a estabilidade que sempre julgou precisar. Tinha esposa, filhos e amante; tinha carro, emprego e casa paga – mas não havia ocorrido a ele, em meio a toda essa rotina que denominara vida, pensar. E agora, distante de qualquer mundo que possa ter construído, ele não estava na vida que incessantemente lapidava na esperança de não ter que imaginar como seria se não a tivesse – e se ele desmoronasse? Mas agora, naquela rua deserta, ele estava ali e só. E essa vida que insistia, assim como a chuva, cessara de súbito.

Viu então que nada ali cabia em sua realidade construída, sempre tão preenchida por pessoas e por aceitação. A vida ali pulsava – o silêncio pulsava, o vazio pulsava, o escuro pulsava. Por perto não havia nada vivo que o homem fosse capaz de reconhecer e essa ausência paradoxalmente preenchia a atmosfera com um caudaloso viver. Pela primeira vez ele sentiu a vida, e sentiu-a ali, sozinho. E sentiu-a à noite – não por coincidência, pois é na noite que a vida vibra, lateja. E ali, parado e assustado diante da descoberta que se fazia sentir em todo seu corpo, o homem igualou-se a noite e a tudo que o rodeava – e sentiu-se pleno. Sentiu-se parte do mundo, do inteiro, e não daquele mínimo que tentava dia-a-dia afirmar como confortável. Era isso que lhe acontecera, o homem abrira mão de seu conforto, de seu conveniente – e estava livre. Sentia-se livre, dolorosamente livre. E a liberdade ardia-lhe nas veias.
Seu grito então corta o silêncio que, contudo, logo o abafa. Um grito doído, agudo – mas fora, sobre tudo, um grito libertador. Naquele grito o homem expulsava algo que sabia não necessitar mais, muito embora não soubesse o que.
Mesmo confuso com as verdades que se desvendavam bem ali na sua frente e iluminavam sua ignorância, o homem estava maravilhado. Maravilhado porque se sentia vivo. E sua força era do tamanho de sua solidão. Enxergara finalmente a vida que até então havia se escondido, latente, e agora se escancarava como o temporal que arromba uma janela. E isso lhe trazia uma compreensão maior, que tornava-o capaz de não procurar entender; sentir apenas, passivo – e inquietava o seu espírito.
Fechou os olhos. Seu corpo, como que tomado por emoção insuportável, tremia. Era a verdade que lhe arrebentara as portas e o invadia pouco a pouco. As pernas cederam e o homem caiu. As mãos encontraram cegas o asfalto, numa tentativa inútil de proteção, e ele agora as sentia esfoladas, sangrando e ardendo – mas, mais que isso, sentia o doce prazer de se estar vulnerável, de sofrer. E tomou sua dor como prova de que se estava vivo, enormemente vivo.

Ainda ajoelhado, voltou-se para o céu e nele procurou algo à que pudesse agradecer o que lhe acontecera – não encontrando nada, levantou-se e continuou seu caminho. Já não era mais o mesmo.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Tornar-se gente


"Sem entender jamais o que havia de bom em ser gente, em sentir-se cansada, em diariamente falir; só os iniciados compreendem essa nuance de vício e esse refinamento de vida."

(Imitação da Rosa - Clarice Lispestor)


Ela pensou em como seria se fosse gente, se pudesse sentir amor, ódio, até mesmo fome. Pensou em como seria esse prazer de que tanto falavam. Pensou em como seria estar angustiada, pensou em como seria mentir (ela, que nunca havia sequer dito algo). Pensou no que faria se lhe ocorresse essa tal embriaguez, se lhe ocorresse o vício. Pensou em como seria gostar, cativar, pensou como seria sentir falta. Pensou em como seria diariamente sofrer e pensou em como seria suportar. Pensou em como seria morrer... Ela até que gostaria de ser gente. Pensou melhor, preferia continuar sendo pedra mesmo, sem nunca se questionar.

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