sexta-feira, 29 de maio de 2009

Masoquismo

Trago em mim o conflito – aprisiono em meu corpo a essência da desordem calculada, pois sei a diferença do meu bem e do meu mal (subtraindo minha calma de meu fogo, sei exatamente o resultado, e assim o sabem vários), mas desconheço a dimensão de cada um – desconheço com um medo e uma curiosidade extrema. E se hoje aqui, sentado confortavelmente em minha cadeira, digito um entre tantos outros textos assim como quem sente a necessidade de ocupar o vazio para não se pegar analisando uma realidade da qual a conclusão seria devastadora – se hoje estou aqui, em meu equilíbrio aparente, isso não parece me pertencer. Há uma distância brutal de vontades sufocadas que separa os meus dedos das teclas que pressiono – é a distância que minha alma está daquilo que eu conheço, a distância entre meu espírito e meu corpo. E se há alguns anos (talvez apenas semanas, multiplicadas pelo abismo entre o antes e o agora) eu chorava tanto ao viver minha realidade tão viva, no meu abandono da razão, porque é que por trás dessa sensação que não sei explicar e que paira hoje em minha rotina sei que se esconde a saudade monstruosa e assustadora daquele tempo. Sob qualquer ótica racional eu sofro menos agora, eu tenho a calma e o sossego que sempre mereci, e uma organização na qual surpreendentemente me encaixo – mas a tensão em minhas veias não obedece a essa lógica, e me impulsiona a um ato de dor e prazer como se valesse a pena se jogar do abismo só pra sentir o vento batendo forte no rosto, jogando os cabelos pra trás e forçando os olhos a uma abertura mínima. Conheço parte da vida pulsante que se mascara nas tentativas de ordem humanas, mas minha morte em paz só viria ao experimentá-la inteira, fria, nua, nojenta, fascinante. Essa minha vontade eu guardo dia-a-dia em uma caixa, simetricamente posta à esquerda da minha mesa de cabeceira alimentando minha organização necessária para se seguir os dias. Mas nunca abro essa caixa, em verdade porque tenho medo do que encontrarei dentro dela – mas quando a parte selvagem, vermelha do meu conflito engole a minha fração racional e branca, eu vejo com uma lucidez que só o instinto é capaz de propiciar. Vejo que minha vida cabível é apenas uma contagem regressiva para o dia que minha própria caixa me engula e dentro de seu tormento eu sacie minha ânsia de sentir o gosto do meu sangue, da minha carne, com a loucura purificando minha alma incomodada e então... então eu compreenderia, assim como quem é exposto a uma verdade divina da qual nunca desconfiou mas que sempre esteve ali, escancarada nos becos de escuro hesitante... e minha alma então encontraria meu corpo e o acolheria num ato de piedade pela mão que durante anos a sufocou. Ah, e então eu sentiria o calor na minha mão ao prender o fogo, eu sentiria o prazer da satisfação de minhas vontades de bicho, das minhas orgias secretas, e comeria com as mãos aquilo que eu encontrasse pelo caminho – eu transcenderia qualquer entendimento e seria mais calado, porque minhas palavras quando viessem seriam súbitas e mortais, cortantes como um punhal libertador em que as ouvisse. Mas seria uma questão de tempo até que minha alma periclitante fosse completamente exaurida pelos frutos de minha ousadia e eu voltasse como um filho pródigo a minha organização inventada e tranquila.

5 comentários:

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  2. Ledo engano.

    O corpo que encontra sua alma – ou vice-versa – jamais volta à organização imposta um dia, mesmo que por si mesmo. Depois de experimentar a possessão de sua própria vida e vontade, sem rédeas alheias para guiar-te, conhece-se a liberdade! É dolorosa, mas é tão deliciosa... que me faltam palavras.

    JAMAIS me arrependo de ter entrado de corpo e alma em minha “Caixa de Pandora” – quando senti que estava prestes à cair na loucura, mergulhei – e hoje meu silêncio abriga palavras mortais, e minhas palavras trazem uma verdade cínica e cruel... porem real. Mas o que me satisfaz ainda mais, é que meu sorriso, minha graça, minha festa, é tão sincera, que meus amigos e irmãos me amam, ainda que eu seja assim.

    Enjoy!

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  3. nao acho que eu tenha me enganado, até porque não escrevi uam suposição e sim minha experiência.. as pessoas são diferentes, e ao me entregar a minha ousadia eu esqueço que minha alma também precisa de abrigo - e por ousadia eu não me refiro ao simples "fazer o que quero", e sim a cavar a parte mais nojenta do ser humano, estar nos lugares mais escuros e sujos. Mas como disse, a alma necessita ser aquecida - pelo menos a minha. Sou um ser de contato. Daí a importância da volta, assim como é importante eventualmente pelo menos pensar em como é estar em casa.

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  4. De fato, você não se enganou. Eu é que não havia compreendido bem o que te afligia... Digamos que as mazelas às quais me referia não se encontravam bem na profundidade “nojenta” do ser humano, e sim naquelas particularidades, peculiaridades, mal compreendidas. De qualquer forma, sempre fui da opinião de que o contato com o lado mais obscuro de si (ou de qualquer assunto) pode ser uma fonte de graças, aprendizado (de si mesmo). Só quem conhece todas as faces obtém o controle (sobre si, sobre as situações e sobre suas escolhas) – informação é poder. Por isso, no caso que se refere, concordo contigo: é importante mergulhar, mas voltar é essencial, também.

    Pode ser doloroso a principio encarar o espelho que mostra um lado dramático suprimido. Mas com o passar do tempo, acho que nos tornamos “masoquistas” sim, e nos olhamos constantemente através dele. Não pela dor... mas pelo auto-conhecimento.

    Quanto a isso, não posso dar testemunhos conclusivos. Tenho visitado meu Monstro Interior periodicamente, e isso tem me deixado mais forte cá na superfície. Fora essa experiência, não posso dizer mais nada. Se vai dar certo... “quem viver, verá” rsss...

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  5. Olha, depois de ler um texto fico meia anestesiada... parece que meus dedos não têm forças suficientes para digitar umas palavras quaisquer.
    Você é incrível! Não consigo achar palavras para dizer o quanto você escreve bem! Me sinto constrangida diante dessa situação. Meus parabéns! Não deixe nunca de escrever! Quando escrevemos esvaziamos nossas almas, e essa, como toda certeza, é uma das melhores sensações do mundo!

    P.S.: adicionei o link do seu blog no meu.

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